Chico Buarque, John Mayer, Aimee Mann, Marisa Monte… É longa a playlist por trás de nossa vida amorosa. Já sugeri algumas, aliás (“11 canções para amar mais”), mas agora me interessa a trilha sonora que não ouvimos.
O caminho para esse silêncio se faz pelo próprio som: para esclarecer o que estou chamando de “trilha sonora inaudível”, vamos analisar a influência da música em uma experiência. Já adianto que meu foco está nas outras estruturas que atuam sobre nós de modo bastante similar ao som.
Trailer de Dumb & Dumber com trilha de Inception
Hans Zimmer construiu uma obra-prima para a trilha sonora de Inception (aqui “A origem”), responsável por boa parte da experiência proposta por Christopher Nolan. Um bando de gênios com tempo livre logo reconheceu a qualidade da trilha e criou mashups de todos os tipos. Para você ter uma ideia, o fim de Lost reeditado com a música do fim de Inception talvez tenha ficado melhor que o original. ;-)
Em uma dessas brincadeiras, pegaram o áudio do trailer de Inception e montaram um trailer para o filme Dumb & Dumber (“Débi & Lóide”). O resultado: todas as cenas são ressignificadas. Se não conhecêssemos o original, nunca desconfiaríamos que trata-de de uma comédia.
Link YouTube | Mesmo conhecendo o filme e o truque, vemos as cenas mudando de textura, pra valer.
Música, essa regente de mentes
Antes de sair do âmbito do som, vamos detalhar um pouco mais o que acontece no cinema.
Depois dos créditos iniciais, ainda nos sentimos sentados na poltrona, sem grandes alterações. À medida que o filme avança, um mundo vai sendo criado. A missão do diretor é nos arremessar para dentro dessa realidade, até que nosso coração, nosso pulmão, nossas glândulas lacrimais estejam reagindo a cada frame. Sabemos de todo o truque, o que por muitas vezes não nos impede de cair no sonho proposto, de ter nossa mente conduzida.
Claro, apenas imagens não são suficientes para nos fisgar. É a música que direciona o olhar, que situa, que define a textura de cada imagem. Quando a trilha sonora funciona, ela não é percebida como um som específico, como música vinda de instrumentos. Nada disso. Na cena que nos envolve, a música age por trás do olho, como se carregasse no corpo. Se tal processo lhe parece óbvio, me antecipo: comece a pensar em como outras estruturas fazem a mesma coisa conosco fora do cinema, sem precisar de música alguma.
A mesma cena pode ser de terror, suspense, ação, comédia, drama… Para cada cena definida, temos incontáveis trilhas possíveis, ou seja, incontáveis experiências, universos de significação. Se a cena pré-existisse com algum sentido inerente e tivesse a música como complemento, isso não aconteceria. O caso é que a cena já surge com a trilha e assim construímos nossa experiência, já direcionados pela música, quase incapazes de sequer imaginar como seria a mesma cena de outro modo, sob o efeito de outra trilha sonora.
Para enfatizar essa percepção, basta colocar duas músicas no iPod e sair para andar na Avenida Paulista. Pode ser “Gold dust”, da Tori Amos, e depois “Love generation”, do Bob Sinclair. Ou alguma da trilha de Into the wild seguida de outra da trilha de Where the wild things are. Qual das duas cenas é a verdadeira? As pessoas estão andando rápido mesmo ou é apenas a sensação da música? Elas parecem estranhas e distantes? Próximas e amigas?
Ou você pega um conflito e tenta extrair visões a partir de músicas, não de letras, mas da ambiência criada por cada música, dos olhares que elas proporcionam. Ouve uma e sente compaixão, redenção, compreensão do mundo do outro. Chora. Ouve outra e sente ódio, raiva, indignação. Uma música desenha um monstro. Outra revela um herói ferido.
Link YouTube | Bobby McFerrin fazendo milagre com a ária mais bonita de Bach.
E então você enfim chega à pergunta essencial desse percurso que descrevo: “Qual música já estava tocando bem antes de eu colocar os fones?”. Ou: “Se eu conseguisse aumentar o volume da minha mente, que tipo de música eu ouviria?”.
Melodias internas que não ouvimos
A trilha sonora sempre existe, com ou sem música de fundo. É como se estivéssemos colorindo as cenas da vida o tempo todo com nossos instrumentos musicais invisíveis e nossa tendência a diretor, compositor, cineasta. Estamos dirigindo, filmando, posicionando câmeras, editando, roteirizando, decupando, perfumando, prestando atenção na continuidade e, claro, ajustando a trilha sonora, quadro a quadro.
Isso tudo fora o personagem. Além de viver, envolvemos o vivido em um mundo de sentido, em uma história que inventamos o tempo todo sem saber.
Mais do que uma metáfora, é precisamente esse o nosso funcionamento! A cada momento, encaramos as coisas com algum pré-roteiro, alguma predisposição melódica, uma ou outra preferência estética. As músicas, essas de som, só aumentam o volume das trilhas inaudíveis, mas elas sempre estão presentes, caso contrário as músicas nesse post não fariam absolutamente nada com sua mente.
Cena: uma namorada e um cara tomando banho
A namorada sobe. Ele está no banho, atrasado. Saiu apenas para abrir a porta e logo voltou. Se esse será um filme pornô ou um drama existencial, bem, não está na cena a definição, mas na trilha sonora.
Ela pode passar por esse momento já imaginando como seria entrar no banho. Ou esperar pelo namorado nua na cama. Da ideia à prática é um pulo. Ela também pode viver essa mesma experiência, sem objetivamente mudar nada, como uma aflição, irritada porque ele está demorando de novo, não se aprontou antes de novo, não a valoriza mais… Esse outro filme continua com ela sentada no sofá, impaciente, emburrada quando ele sai do banheiro.
Se analisarmos apenas o banho desse cara, não há diferença entre as duas cenas. Não há nada no banho dele que ative uma ou outra resposta em sua namorada. É o modo com que ela olha para o banho que constrói o filme todo. A posição da câmera, o foco na edição, o ritmo da trilha que ela não ouve, mas que não cessa de movê-la. Até mesmo sua experiência de tempo (o banho vai durar minutos ou décadas?) é definida por essa trilha oculta.
Mais ainda, uma vez que ele fecha a porta e religa o chuveiro para terminar o banho, a experiência explode com tudo, deixando inacessíveis todas as outras possibilidades: trilhas, edições, ângulos que ela não escolheu. É por isso que, sob a perspectiva da namorada, parece que o banho é aquilo mesmo que lhe parece, do jeito que surge, com a textura ali manifesta. Se ela está irritada, tem toda razão: ele, de fato, deveria ter se arrumado antes. Se está excitada, perfeito: ele vai sair do banho louco para comê-la antes de se vestir.
Nossa tragédia começa no ocultamento dos filmes que deixamos de viver por causa das trilhas que continuamente tocamos, das edições instantâneas, ângulos de cada olhar, roteiros que seguramos debaixo do braço. O filme que surge parece o único possível, como se viesse pronto, lá de fora, como se não tivesse o nosso nome nos créditos.
Link YouTube | Esse cara pegou a melhor música da trilha de “The straight story” (do mestre Angelo Badalamenti) e botou em cima de cenas de seu bairro. Olha o resultado, dá até vontade de ir lá conhecer. Aliás, é assim que a gente se apaixona: colocamos pra tocar a nossa melhor música em cima de alguém, que por acaso ficou algum tempo por perto. A paixão é essa aura. Como é nossa melhor música, vemos o melhor do outro e acabamos expondo o nosso melhor. Quer dizer, até outras trilhas começarem a tocar o terror…
Brincando de cineasta
Não há nada de errado nesse processo de construção cinematográfica da vida (e me refiro à própria percepção de cada fenômeno, não a alguma espécie de romantização posterior). O problema está na cegueira, no fato de não sabermos que estamos agindo assim, não exatamente no sofrimento que alguns filmes mais duros despejam sobre nós.
Ora, já que a trilha sonora está aí, já que todo momento já surge condicionado, já que nunca temos acesso às infinitas possibilidades, só nos resta olhar para o modo como estamos trazendo os eventos à tona, como estamos construindo a vida que parece nos acontecer, que parece vir de fora. A cada momento, somos obrigados a pisar numa direção ou em outra sem antes saber qual terra é melhor. Pisamos e só depois dizemos: “Ah, aqui é fofo”. A cada passo, uma desconfiança, mesmo em terras boas: “E se lá for melhor?”. Ou: “E se a terra boa acabar no próximo passo?”.
Nossa situação atual, seja qual for, agora mesmo, não é positiva ou negativa em si mesma. Há alguma trilha sonora interna atuando sem cessar para que ela nos apareça de um certo jeito, para que a vivamos como uma experiência específica. Em vez de se preocupar em dar o próximo passo, torcendo para que ele nos leve a uma situação melhor, podemos simplesmente mudar a trilha sonora e ver no que dá, ver como isso altera a experiência toda, mais até do que se mudássemos a situação diretamente.
Voltando à cena do homem no banho, agora vemos a namorada sorrindo para sua própria dinâmica, ouvindo a trilha sonora que colocou, sem saber, na cena. Ela pode ficar emburrada ou pode tirar a roupa. A situação não está definida; o que vale é a experiência dessa situação. Na verdade, o que chamamos de situação é tão somente nossa experiência. Não há situação em si, independente de nossa edição, roteiro, fotografia, iluminação…
O banho do cara demora o suficiente para ela avançar um pouco mais. Agora ela simula os dois filmes em fast-forward e observa como ficar emburrada não é necessariamente pior do que tirar a roupa, pois talvez ela tire a roupa, ele broche e os dois briguem. Talvez ela fique emburrada, ele fique nervoso e eles acabem com as frescuras se acabando no chão, o que por sua vez não é necessariamente melhor ou pior do que brigar… ;-) Basta um outro fast-forward para comprovar a infinita abertura e flexibilidade dos eventos.
Ela continua até se dar conta de que o que importa não é seguir em uma ou em outra direção, mas seguir com olhos abertos para a liberdade sempre presente, para a insubstancialidade de cada momento, como se tudo pudesse virar lixo ou ouro, a cada segundo, como se nada nunca se definisse e se fechasse completamente.
Sua escolha, então, não é entre o sofá e a cama, a cara emburrada e a perna esticada, entre uma situação e outra, mas entre viver o filme como cineasta e viver o filme como um ator com amnésia.
Link YouTube | Ouça lembrando da vida inteira ou de uma história amorosa. O que sai?
Silêncio
Ouvir a trilha sonora pela qual atuamos e poder transformá-la. Trocar olvido por ouvido. Liberdade não é só isso.
Se o cara ficasse um pouco mais no banho, a namorada certamente questionaria até mesmo sua necessidade de mexer na trilha sonora para ter outras experiências de uma mesma cena. Ela olharia com calma para essa capacidade de mudar a trilha, de trocar de roteiro, de ajustar ângulos… e desconfiaria de uma liberdade anterior: a de criar filmes e trilhas.
Brincar de cineasta é excelente, claro. Mas como é possível que uma cena que hoje nos aflige (a ponto de cortar nossa fome) amanhã seja motivo de risadas soltas e despreocupadas? O que faz com que os filmes e trilhas se alterem tanto e tão rápido?
Mais do que culminar em uma resposta, essa pergunta direciona nosso olho para uma dimensão além de qualquer trilha sonora, algo como o que imaginamos quando ouvimos a palavra “silêncio”.
Repousando nesse silêncio, e não em filmes específicos e suas possíveis edições e refilmagens, entendemos que não precisamos criar um filme a partir de outro, resolvendo algo, trocando algum personagem, mudando a trilha ou a fotografia. Dá para criar um filme a partir da própria liberdade de criar filmes, do zero – o que não significa alguma espécie de fascinação pela morte ou aversão à continuidade, pois uma das coisas mais divertidas é criar, do zero, a mesmíssima realidade que existia anteontem. Não é isso o que uma garota faz quando atende o telefone com um “Oi, amor…”?
Pois bem, é claro que o homem de nossa cena saiu do banheiro depois de todo esse tempo. Sua paciente namorada talvez esteja na cama, talvez no sofá ou até já tenha ido embora. O importante é que ele também tenha percebido algumas coisas enquanto a água corria…
Link YouTube | Um dos melhores temas de “Lost”, de Michael Giacchino (italiano, pra variar).